Uma Lógica para Decisões: Matriz de Avaliação de Cenários
Sempre fui uma pessoa que viu muito valor no amanhã. Desde que sai do colegial e entrei na universidade procurei pautar minhas decisões com planejamento. Montei uma lógica, até então só minha, e sem nenhuma fundamentação cientifica, que usava para me programar e tomar decisões. Explico: essa lógica se baseia em uma matriz para análise de cenários, onde em um dos eixos esta a análise histórica do comportamento e dos fatos ocorridos e, visto que a evolução incremental sociocultural é muito lenta e as mudanças político-econômicos tendem a ser um pouco mais rápidas, os paradigmas tendem a se repetir, portanto, a análise do que aconteceu no passado seria uma boa proxy do que poderia acontecer novamente no futuro. No outro eixo da matriz, uma escala de probabilidade e, como a probabilidade tende a ser algo complexo e pouco intuitivo, decidi por usar números de fácil compreensão, dividindo as chances de algo acontecer em 5 cenários: Improvável (0%), Remota (25%), Possível (50%), Provável (75%) e Certeza (100%) (Figura 1). Para mim, as decisões passam a ser mais simples quando estimamos uma probabilidade em um potencial cenário futuro ancorado em fatos do passado.
Crises com a que estamos vivendo fazem com que você tenha que olhar demais para o presente para se manter vivo. A neblina ao olhar para o futuro tende a ser mais densa, mas nem por isso você pode deixar de se planejar. Sem dúvida nenhuma, estamos passando agora por algo que as últimas 2 ou 3 gerações não tiveram oportunidade de vivenciar. O isolamento social imposto para controlar a disseminação do vírus deriva impactos em todas as áreas do conhecimento humano. Trará sérias consequências econômicas e políticas e pode, devido suas características, levar a profundas mudanças socioculturais. E, não me lembro nos meus últimos 20 anos como profissional e em minha vida adulta uma dificuldade tão grande de enxergar além dessa densa neblina para poder me preparar. Como pensar nos cenários? onde definir as ações? quais as suas chances? E, sem essas respostas, fica muito difícil de usar a minha matriz para poder me ajudar.
Bem, precisamos partir de algum ponto, portanto vamos começar. O que vivemos é uma crise, e uma crise muito profunda que terá consequências em mudanças atitudinais e comportamentais, de cunho antropológico e mudanças culturais de cunho sociológico. Nada mais adequado portanto que avaliar algumas profundas crises do passado que tem algum tipo de relação com o que vivemos hoje e ver quais foram suas reverberações e resultados (Figura 2).
O Que Podemos Aprender com as Crises do Passado
A primeira que irei analisar foi a Peste Negra ocorrida na metade do século XIV na Europa, também conhecida como peste bubônica, dizimou algo como 25% da população da região em um período de poucos anos. Alguns historiadores acreditam que este surto epidêmico foi o responsável pela aceleração do fim do feudalismo, pois com menos gente viva no campo para trabalhar, os senhores feudais precisavam passar a valorizar mais as pessoas para manter sua posição. Esta nova dinâmica, alterando a ordem político-social, acabou por desencadear alguns fenômenos como o Renascimento, As Grandes Descobertas (Américas) e mais para frente o Iluminismo.
A segunda grande crise, também relacionada a um surto epidemiológico, conhecida como Gripe Espanhola, começou na Europa durante o final da Primeira Guerra Mundial e estima-se que tenha matado algo em torno de 40 a 50 milhões de pessoas. Foi a primeira grande crise sanitária global, com impacto social e econômico, que teve fortes reverberações aqui no Brasil, dentre elas podemos destacar o falecimento do presidente eleito Rodrigues Alves pela doença. Para o combate ao vírus, foram tomadas diversas medidas de distanciamento social. Capitaneada por Carlos Chagas, a fundação Osvaldo Cruz, teve um papel essencial para o combate da doença e tornou-se uma referencia no imaginário popular brasileiro durante gerações. Da mesma maneira, alguns historiadores também creditam a esta crise a aceleração do final da República Velha que aconteceu em 1930, e o inicio da modernização do país com o surgimento de lideranças, como o próprio já mencionado Carlos Chagas, de cunho mais moderno e cientifico.
A terceira crise analisada, também no século XX, foi a Segunda Guerra Mundial, esta que foi a guerra mais sangrenta de toda história da humanidade, teve um efeito significativo na dinâmica da força de trabalho. Durante a primeira metade do século XX a mão-de-obra da indústria era fundamentalmente masculina, porém, durante o período de guerra, com os homens lutando nas frentes de batalha, as mulheres precisam assumir suas posições nas industrias para manter o funcionamento da máquina. Ao final da guerra, as mulheres iniciaram um processo gradual de ascensão no ambiente de trabalho que acabou culminando com maiores liberdades individuais e os próprios movimentos feministas durante os anos 60.
A quarta crise, mais recente, foi o ataque as torres gêmeas nos EUA em 2001. O evento, mundialmente conhecido como 11 de Setembro, teve consequências politico-comportamentais especialmente no que tange a direitos individuais, com a centralização de um volume de informações pessoais muito maiores por parte dos governos das democracias ocidentais, assim como regras de aviação mais rígidas e controles individuais mais rigorosos nas viagens internacionais e nas imigrações.
Por fim, a quinta crise, foi a pandemia de SARS na China em 2003. Apesar de ter um efeito mais localizado, ficando restrita principalmente a Ásia, o efeito dessa crise foi particularmente intrigante do ponto de vista do comportamento na China. Houve uma aceitação cultural do uso de máscaras em locais públicos, que de inicio não foi bem vista mas que agora é uma prática estabelecida. Além disso, o país vivia uma fase de crescimento acelerado, era esperado que o varejo físico se disseminasse na mesma proporção de economias de países desenvolvidos da Europa, EUA e Japão. Porém o que se viu, com as medidas adotadas de distanciamento social, onde os consumidores se viram obrigados a ficarem em suas casas, foi o crescimento significativo do e-commerce, e o desenvolvimento de empresas como o Alibaba e futuramente da Tencent, pois ao final da crise, os consumidores mantiveram os hábitos adquiridos durante o período de quarentena de realizar seus pedidos através dos canais online.
Neste sentido, acredito que o que podemos aprender com o entendimento das relações da causa destas 5 crises passadas e seus efeitos (Figura 3) é que de alguma maneira, mudanças acontecerão após a crise que estamos vivendo hoje.
A Difícil Tarefa de Analisar o Presente
Só avaliar as crises anteriores não basta, pois devido as características únicas que estamos vivendo, nada do passado pode servir como base e alicerce para o futuro, e é isso que torna tão difícil nossa compreensão e análise. Uma boa pista esta no comportamento presente que pode vir a ser o novo normal. Temos então que ter uma visão mais abrangente e abstrata das mudanças comportamentais atuais para colocá-las na perspectiva de minha análise matricial. Neste sentido é ideal mapear os cenários econômicos, socioculturais e políticos que estamos vivendo agora nesta fase aguda da crise (Figura 4).
Do ponto de vista econômico, temos diversas iniciativas e comportamentos novos que estão em curso neste momento. Podemos observar o crescimento das transações através do comércio eletrônico, principalmente de farmácias e supermercados, que até então eram categorias menos relevantes no segmento. O fechamento das escolas e universidades esta acelerando a adoção por todas as instituições de ferramentas de e-learning e ensino a distancia que até então não eram vistas com bons olhos como alternativas de educação. A dinâmica do trabalho esta acontecendo através do trabalho remoto (Home Office), e a colaboração do trabalho digital, que já era uma opção em muitas organizações, agora se tornou realidade para todas. A descentralização das cadeias de suprimentos, pois os produtos precisam estar mais próximos do consumidor para atende-lo mais rápido, levando a aceleração da logística granularizada. A aceleração da adoção de impressoras 3D para deixar mais rápido o ciclo industrial da produção de determinados produtos, especialmente insumos médico-hospitalares devido a criticidade do momento. A aceleração da digitalização dos serviços financeiros. Por fim, algumas outras mudanças que já estamos começando a ver como a mudança dos comportamentos de higiene no ambiente de trabalho, a nacionalização de alguns setores industriais fundamentais para a sociedade durante momentos de crise e, a aceleração do uso de energias renováveis, possivelmente por uma maior consciência do potencial aquecimento global e da crise ambiental como lição da crise epidemiológica.
Já do ponto de vista sociocultural, podemos observar uma valorização da vizinhança, com a compra de produtos locais e a valorização dos estabelecimentos do bairro, uma valorização do contato social, tolhido pelo distanciamento social exigido para evitar a propagação do contágio, a redução do transito e a racionalização do ato de sair de casa, uma valorização dos médicos e cientistas, que, com o uso da ciência, estão na linha de frente para o combate ao vírus e ao cuidado das pessoas. Nesta mesma linha o crescimento (e regulamentação) da Telemedicina, a valorização da família, pelo tempo que estamos passando juntos em casa, uma maior ênfase na higiene pessoal necessária para se manter saudável e também observamos, uma possível aceitação da atualização de padrões de privacidade para acompanhamento do isolamento e do monitoramento do contágio.
Por fim, do ponto de vista político, temos uma volta da união nacional em torno de um inimigo comum (vírus) atenuando a polarização politica ao menos momentaneamente na maior parte dos países do globo. Além disso, desde a segunda guerra mundial as trocas internacionais, ou o comércio entre países, cresceu de forma consistente, apesar de terem se mantido razoavelmente estável nos últimos 5 anos. Isso se dá tanto pelo limite das mercadorias que podem ser intercambiáveis, como também pelo desenvolvimento das economias internamente, o que reduz a dependência externa. Neste momento podemos observar a acentuação do nacionalismo em detrimento do internacionalismo, pois essa crise teve seus efeitos potencializados por conta da globalização e das interdependências internacionais que acelerou o processo de disseminação da doença.
Novo Normal: Colocando o Presente em Perspectiva
Por estarmos no meio da fase aguda da crise, ainda é muito difícil apurar qual a probabilidade de cada uma das atuais mudanças de comportamento para estimar qual delas persistirá. Porém com base no panorama atual, divido em 4 blocos (Figura 5) que acredito estarão entre os cenários Possíveis (50%) e Prováveis (75%) levando em consideração a perspectiva histórica e analisando quais dessas mudanças de costumes que tem menos fricção e consequentemente facilidade para serem adotadas para a fase futura do novo normal e as listo abaixo:
1. Saúde & Medicina: Algumas práticas e mudanças comportamentais que estão sendo aplicadas em larga escala atualmente para enfrentamento da disseminação da doença devem continuar após a acomodação da crise, dentre elas, podemos destacar: Tecnologia para testes de doenças em escala como medição de temperatura e testes rápidos realizados em estabelecimentos comerciais como restaurantes, shoppings e lojas de ruas, monitoramento e acompanhamento de pessoas através de seus dados pessoais de celular compartilhado pelas redes de telefonia e centralizados pelos órgãos públicos responsáveis (este aspecto em particular leva ao potencial cerceamento do estado nas liberdades individuais de ir e vir). Telemedicina com consultas e acompanhamento de cirurgias sendo realizadas de maneira remota. Além da valorização dos profissionais da saúde e especialistas que dedicaram suas vidas para ajudar no combate a doença e devem permanecer no nosso imaginário coletivo como os grandes vencedores desta crise.
2. Trabalho & Gestão: Muitas empresas tem enfrentado o desafio do distanciamento social adotando práticas de trabalho remoto. Estas práticas porém não são novas e com o advento das tecnologias de comunicação digital já eram uma prática comum em muitas organizações, todavia a crise deve acelerar a adoção destes procedimentos, assim como iniciar o processo de transformação digital dentro e entre organizações que ainda tinham algum tipo de barreira para implementação de tais processos. Podemos destacar dentre as principais aplicações as ferramentas de colaboração digital (i.e. GitHub, Bitbucket, etc.), as aplicações de teleconferências (i.e. Zoom, Hangout, etc.), controle e acompanhamento de trabalho remoto (i.e. Trello, Slack, RunRun, etc.), Além de impor aos líderes a necessidade de novas maneiras de liderança para atrair e engajar seus colaboradores. Por fim, esta situação também leva os colaboradores a prepararem suas casas para performar com a mesma excelência do ambiente do escritório, comprando equipamentos como mesas, cadeiras e fones de ouvido.
3. Ambiente Urbano: A quarentena e o tempo que as pessoas tem passado nas suas casas durante o isolamento social esta levantado reflexões tanto sobre prioridades relacionadas a gastos com itens de baixa necessidade, como com o tempo despendido no deslocamento para a realização de atividades, e também levado muitas pessoas a pensarem de maneira mais pragmática sobre a possível nova onda critica do aquecimento global, que em muitas maneiras, pode trazer consequências ainda mais graves do que a atual. Neste sentido, a potencial redução no consumo de combustíveis fosseis atual pode ter um efeito mais permanente, levanto ao menor uso de automóveis e a um consumo mais consciente. Outro possível efeito que tende a perdurar é a diminuição dos contatos em espaços públicos, como shoppings, restaurantes e locais de grande aglomeração. As pessoas devem passar a ficar mais tempo dentro de casa e serem mais criteriosas na escolha de suas opções ao sairem. Além disso, as casas tendem a ser maiores e melhor aproveitadas, pois como as pessoas ficarão mais tempo nelas, tanto por suas escolhas, quanto pela prática de home office, as moradias devem ser valorizadas. Uma das consequências da disseminação do trabalho remoto é a diminuição dos escritórios, com a rotatividade de funcionários nas empresas o espaço físico poderá ser menor para dar mais eficiência aos negócios. Por fim, todas essas medidas devem aliviar de alguma maneira o transito nos grandes centros, somado a isso, é provável que haja algum esforço na ampliação da distribuição dos horários de movimento (distribuição do transito para além dos horários de pico atuais).
4. Negócios: O processo de transformação digital que em grande medida já tinha alcançado diversas organizações, mas ainda encontrava algumas barreiras, ganhará um empurrão extra com a crise e deve tornar-se o grande centro das atenções empresarias daqui por diante. As pessoas estão passando boa parte do seu tempo de reclusão conectadas na internet, e os consumidores estão se relacionando com as empresas neste ambiente. As marcas com uma maior integração físico-digital, mais digitalizadas, estão se saindo melhor. Por outro lado, aquelas que não rejuvenescerem, não se adequarem, estão fadadas a não superar esta crise. Além disso, o e-commerce é um processo irreversível, muitas pessoas que ainda tinham algum tipo de receio nas compras online e que começaram a comprar por causa da crise, passarão a adotar a multi-canalidade com mais força. Itens cuja fricção foi reduzida com as compras online devem estabelecer-se como preferenciais no novo normal, principalmente em categorias como supermercados e farmácias. Por outro lado, o efeito provável de recessão econômica generalizada, e o esforço coletivo na manutenção do emprego deve gerar uma onda de valorização dos produtos e serviços locais, para ajudar na sustentação das micro e pequenas empresas. Também devemos observar uma descentralização da cadeia de suprimentos, facilitando a superação de crises futuras, favorecendo o comércio local e dando agilidade as entregas das vendas através do comércio eletrônico. Por último, devemos observar uma aceleração da indústria local através de impressoras 3D, que são mais eficientes e permitem, principalmente, que alguns setores chave da economia agilidade e redução da dependência do mercado externo. Como consequência de todos estes fatores devemos ver uma redução das transações comerciais internacionais, reforçando alguns dos efeitos políticos de nacionalismo mencionados.
Conclusão
Esta crise claramente mostra que só podemos concluir da análise do passado que movimentos desta magnitude terão consequências longas e duradouras em mudanças econômicas, socioculturais e políticas. Devemos portanto, estudar e acompanhar detalhadamente e de maneira granular os movimentos do presente, abstraí-los e coloca-los em perspectiva. Usando a lógica matricial que desenvolvi para análise de cenários, acredito que teremos impactos significativos de comportamento em áreas como saúde, trabalho, negócios e no ambiente urbano.
Finalmente, acredito que é importante nos atermos aos perigos das comparações com outras regiões. Por mais que estejamos defasados em relação a Ásia, Europa e EUA, a estrutura política, econômica e social do Brasil é muito distinta e única, portanto é necessário comparar com precaução e encontrar soluções próprias usando nossa criatividade. Brasileiros são especialistas em lidar com crises e incerteza, esta pode ser uma oportunidade única de mostrarmos ao mundo o que fazer, ao invés de esperarmos as respostas prontas de fora.